Segregação Oficial

Duas mulheres gaúchas viviam em união estável, e decidiram transformar esse relacionamento em casamento. Para isso, foram à justiça, pois o cartório recusou-se a habilitá-las regularmente. O juiz que primeiro analisou o caso entendeu que pessoas do mesmo sexo poderiam, no máximo, constituir união estável, conforme aliás já reconhecera o STF (Supremo Tribunal Federal) essa condição a dois homens que viviam juntos havia muitos anos, mas jamais casamento, que somente poderia acontecer entre uma mulher e um homem. Insatisfeitas, as gaúchas recorreram para o TJ/RS (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul), que manteve integralmente a decisão monocrática. Ainda irresignadas, apresentaram novo recurso (REsp 1183378), e levaram a discussão para o STJ (Superior Tribunal de Justiça) onde, na histórica votação da última terça feira, dia 25, sua 4ª Turma, por maioria, entendeu ser possível, sim, o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. O voto do ministro relator, Luís Felipe Salomão, foi acompanhado pela maioria dos membros da 4ª turma, e seu entendimento foi no sentido de que a orientação sexual não pode justificar impedimento para a constituição da família, tampouco impedir a aquisição da proteção jurídica que lhe é peculiar. Para o ministro, “o mesmo raciocínio utilizado, tanto pelo STJ quanto pelo Supremo Tribunal Federal (STF), para conceder aos pares homoafetivos os direitos decorrentes da união estável, deve ser utilizado para lhes franquear a via do casamento civil, mesmo porque é a própria Constituição Federal que determina a facilitação da conversão da união estável em casamento.”
Interessante essa decisão, como também foi muito interessante o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo. É que o Código Civil é expresso em afirmar que o casamento somente pode acontecer entre homem e mulher (art. 1.514), e a Constituição Federal também não deixa dúvidas de que a união estável apenas pode ocorrer com homem e mulher (art. 226, § 3º), mas ambos dispositivos violariam o disposto na parte inicial da própria Constituição que estabelece quais os princípios fundamentais do nosso ordenamento, pois impedi-los para pessoas do mesmo sexo (tanto a união estável como agora o casamento civil) seria forma de discriminação, o que é taxativamente proibido pelo art. 3º, IV da Carta Política. Desse modo, embora sejam claros o Código Civil e a Constituição Federal em proibir, agora entendem os tribunais superiores que podem casar-se, como também podem constituir união estável, pessoas do mesmo sexo, e talvez amanhã seja permitida também a bigamia.
Entretanto, a discriminação é apenas repudiada quando diz respeito à relação entre particulares, como o casamento gay. O único que pode discriminar no Brasil é o Poder Público. Explico. A Agência Nacional de Saúde (ANS), pela resolução nº 259, de 17 de junho de 2011, definiu quais os prazos máximos a ser adotados pelos planos de saúde para agendamento de consultas, exames e cirurgias, e fixou que nunca podem ultrapassar 21 dias úteis. Ora, se existem prazos para os planos privados, esses mesmos prazos deveriam ser adotados com relação aos que não têm plano de saúde e dependem do SUS porque, se assim não fosse, existiria distinção indevida entre brasileiros, pois os que têm planos de saúde devem ser tratados em até 21 dias, enquanto os que não têm podem esperar meses para uma simples consulta. Na verdade, a resolução da ANS institucionaliza duas classes de brasileiros: a dos que têm planos de saúde privados, e por isso devem ser atendidos prioritariamente, e a dos que não têm, e dependem do SUS.

Isso motivou a Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo, no município de Baixo Guandu, a propor uma ação civil pública (nº. 007.11.001946-5, pela 1ª Vara Cível), requerendo que aos pacientes do SUS fossem adotados os mesmos prazos estabelecidos pela ANS para os planos privados. Em corajosa decisão, o juiz Roney Guerra Duque concedeu medida liminar em 28/09/2011, com validade em todo o estado capixaba, determinando que a resolução nº 259 deveria ser ter “sua aplicação no âmbito da saúde pública (SUS), passando a valer para este, com as hipóteses e prazos nela regulamentados, em respeito à igualdade apregoada pelo texto constitucional”. Essa decisão ainda vige, e constitui um importante paradigma para combater a segregação oficial que decorre da fixação de prazos apenas para os que têm planos de saúde. Ainda mais nos dias de hoje, quando o STF, e agora o próprio STJ, entendem que qualquer forma de discriminação é inadmissível num Estado Democrático de Direito como o nosso, é inaceitável uma norma que institucionalize essa segregação.  Se é discriminação proibir a união estável ou o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, é igualmente discriminação estabelecer prazos para que uma pessoa seja atendida pelo seu plano privado enquanto quem depende do SUS não tenha prazo algum. Não deveríamos ser todos iguais?


Vladimir Polízio Júnior, 40 anos, é defensor público estadual (vladimirpolizio@gmail.com

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